Quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, eu não sabia o que responder. Eram tantas possibilidades. Eu podia ser qualquer coisa. Então descobri que quem fazia novela e filme chamava “atriz”. Achei perfeito: se eu fosse atriz, eu poderia ser de qualquer profissão. Muito versátil. Para ajudar, ainda uma prima é uma atriz famosa. Ela não sabe que eu existe, mas é aquilo igual da família Cavalcante, que todo mundo saiu do mesmo ramo, sabe?
Mas eu nasci com uma mancha de nascença no rosto e no corpo todo. Eu achei que isso ia me impedir de atuar. Que eu até poderia atuar no teatro por exemplo, mas que nunca seria contratada pra TV (mal sabia eu que eu estava diminuindo a coisa errada, mas eu era uma criança dos anos 90, não sabia nada da vida). Até o tratamento a laser no rosto eu fiz com a esperança da mancha sair e eu poder ser atriz, igual minha prima.
No Ensino Médio entrei para o clube de teatro da minha escola católica. Eu era a mais velha. Peguei o papel principal. Não tiraram nenhuma foto de frente da minha performance. Eu tinha certeza que era porque eu tinha a mancha. Mas se fosse um problema tão grande assim, será que ninguém ia sugerir uma base? Hoje já acho que era só um ângulo para pegar o “palco” todo.
A mancha nunca saiu. E depois de várias montanhas-russas sobre isso, finalmente passei a celebrá-la. Eu não fui atriz porque eu não quis e não investi, apesar de gostar. Não tem nada a ver com a mancha. Eu poderia ter sido atriz com mancha. Eu poderia entrar numa trupe de teatro agora, aos 37 anos. Teatro é sobre gente, sobre mágica, e eu sou as duas coisas e todas as outras. A mancha nunca me impediu de nada do que eu achei que ela fosse me impedir. Não me impediu de ter amigos, achar emprego, nem de namorar, ficar, casar, ter filho, realizar meus sonhos, nada.
Minha amiga Carol fez esse quadro lindo que é, literalmente, a minha cara.
Até aí, tudo bem.
Na internet, tive meus momentos também. Conheci outras pessoas com hemangioma na comunidade do Orkut — não me lembro se eu criei ou só entrei quando ela era muito embrionária. Depois, algumas pessoas conhecidas passaram a surgir. A Ryley faz maquiagens e celebra sua mancha. Outras pessoas mostraram suas vidas com a mancha. Uma busca simples por birthmark traz um monte de pessoas legais.
Tudo isso pra dar um pouco de contexto sobre como me senti ao ir passando os shorts do YouTube e encontrar uma atrocidade. Eles contam a história da menina que pinta uma boneca para parecer com a mãe, mas em vez de pegar uma atriz com a mancha, colorem um hemangioma no rosto dela. Como um black-face só que hemangioma-face.
Eu ia reclamar nos comentários mas o vídeo (de uma história falsa e requentada — a original era uma boneca que a mãe já tinha em casa) foi apenas dublado para português e, pelo visto, é russo. Além disso, eu sinto que as pessoas nos comentários não iam entender. Estão todas dizendo “ah que lindo!”, “nossa, muito emocionante!” e eu aqui me sentindo ultrajada. Desrespeitada. Uma chacota.
Veja, eu nasci branca, eu nunca vou saber o que é um black-face. O mais próximo disso que eu tinha sentido até hoje são os tik-tokers com uma toalha na cabeça ou uma camiseta social feminina exagerando nossas mães, avós e tias — o que já é bem desrespeitoso, mas está no âmbar cultural que estamos inseridos e quase, algumas vezes, rola um quê de identificação. Ouso dizer de humor.
Mas ver a minha mancha, o meu rosto, sendo PINTADO falsamente em outra pessoa? Uma pessoa que vai passar uma água micelar e seguir a vida dela? Meu estômago dá um nó. Minha garganta fecha. Porque eu sei o que eu senti quando fui na médica, ela fez mil exames, chegou à conclusão que eu não tinha nada e disse “Ah, se é só estético, melhor nem mexer”. Eu sei o quanto eu chorei aquele dia, me sentindo fadada a ser feia pra sempre.
Em ainda outro nível, eu sei o que é ser mãe e precisar cuidar da má-criação de gente doida da internet (da criança também, eu jamais deixaria meu moleque entrar em uma loja de brinquedos nem com um sorvete, quem dirá com uma canetinha). Eu sei da emoção que é uma criança que você fez te admirar, depois de todas as outras que você conheceu na vida naturalmente te estranharam.
E aí usar isso tudo… pra me representar… tão falsamente?
Eu já sei. Eu tô me sentindo a trupe Avatar (o desenho, não filme) quando eles assistem a peça de teatro. É uma representação caricata dele, pela ótica da Nação do Fogo, e apesar de ter um fundo de verdade e alguns chamarem até de “homenagem", eles sabem que é no máximo uma elofensa.
Talvez eu esteja exagerando — vem uma voz no fundo da minha cabeça. Talvez seja fofo, e eu esteja problematizando algo que talvez eles tiveram boa intenção de fazer. Mas quer saber? Eu cansei de aceitar ser humilhada porque “eu tenho boas intenções” ou “eu só tô falando pro seu bem”. Eu não aceito mais.
Eu sou uma pessoa com uma mancha de nascença. Não tem boneca pintada ou pais que façam tatuagens com a mesma mancha que tirem a minha solidão. Pessoas sem manchas não vão entender isso nunca e não estão me celebrando adicionando manchas ou maquiagens nelas. Quem me celebra são outras pessoas com manchas. Pessoas que brincam com as cores e aquarelas das suas peles. Pessoas que sorriem em tons de púrpura, rosa, branco, marrom, preto, todos. Pessoas que sabem que a gente já chorou num procedimento estético, por fazer ou por não fazer. Aqueles que eu encontro na rua e sorrio, “olha, eu também tenho!”. Gente que muda de cor no frio.
Não tente imitar as características do outro. Recolha-se à sua insignificância de ser padrão. Não seja o protagonista de histórias que não são suas. Eu posso contar eu mesma, se alguém quiser ouvir de verdade.
A terapia é só sexta-feira, sabe?