Em um domingo qualquer, 20 anos atrás, eu estava refletindo sobre a vida da minha mãe, em um desses momentos adolescentes que a gente picota o cordão umbilical. Eu pensei que ela seguiu o script da vida: ela estudou, se casou, teve duas filhas. Eu, no topo dos meus 16 anos, não quis seguir esse script. Quis seguir o meu caminho, errar, desviar da norma. Logo era a hora do jantar, e expressei pra ela meu desejo de não ser igual, não seguir um script, mas… o filtro adolescente fez com que tudo saísse agressivo, como se ela fosse errada por ter vivido a vida dela, e como se ela tivesse tido uma vida perfeita. Ela ficou chateada. No outro dia eu pedi desculpas, mas se seguiram semanas de tratamento de silêncio que só se resolveram quando eu voltei pra norma: mudei de escola para a que ela trabalhava, botei minha máscara de boa menina e tive a primeira experiência com a depressão que passou despercebida entre os hormônios da adolescência.
Eu trato minha depressão desde meus 23 anos. Mas a que eu tratava lá atrás não é a mesma que eu trato hoje. Eu enxergo a depressão como um vírus de computador que se adapta. A primeira coisa que um vírus antigo de computador fazia era impedir que você lesse CDs: assim, não poderia instalar antivirus. A depressão tira suas alegrias e vontade de ver gente, te mantendo naquele espiral de nada. Eu tento lidar com ela, às vezes passo alguns meses indo bem, mas aí viro uma esquina e a gente se encontra de novo.
Já desisti de esperar que seja diferente e aceitei que vai ser sempre assim. Meu objetivo é só que as crises sejam leves e sair delas o mais rápido possível.
Quando eu comecei a fazer análise, eu achei que era deprimida porque eu vesti aquela máscara lá 20 anos atrás e nunca mais tirei. O problema da máscara é que, além de eu ser uma péssima mentirosa, ela me corrói. E eu achava que estava fazendo o certo, sabe? “Puxa eu tenho tudo. Por que estou tão infeliz?” aí trocentas terapias depois: “ah é, eu tenho tudo que outra pessoa queria pra mim! Por isso estou tão triste. Agora vou fazer o que eu quero pra mim!"
Daí eu fiz.
Com o mercado de trabalho do jeito que tá, realizei meu sonho de falar inglês sem morar em outro país: achei um emprego na gringa. Ele não paga 5x o valor do meu salário anterior porque sou CLT, mas isso é ainda melhor. Férias, 13o, FGTS, tudo: talvez mais do que meus colegas americanos. Fiquei bem feliz.
Por um mês.
No segundo mês ficamos doentes em casa, a carga de trabalhar 8h/dia (depois de 3 anos trabalhando 6h/dia) bateu forte, eu pirei e deprimi pesado. Nossa, teve o diagnóstico de TDAH também. Uma bagunça.
Mas por quê? Porque eu não gosto de iniciar um trabalho novo. Eu detesto. Porque eu fico perdida, não sei o que está acontecendo, preciso aprender e errar e isso é tão desconfortável.
Daí tá. De repente, meu maior sonho aparece em um story de instagram: minha casa, com quintal e edícula, num valor possível de pagar, financiável, em um bairro bom.
Eu tô até agora sem acreditar que eu comprei uma casa, em Florianópolis, antes dos 40, sem que nenhum parente meu morresse pra isso pra eu herdar nada (não que eu quisesse, mas é como eu achei que fosse ser). Eu fiquei exultante, eu nem sabia que dava pra ser tão feliz. Tem até um abacateiro no quintal, sabe?
Daí fiquei 2 meses hiperfocada em resolver absolutamente tudo e burnoutei. Pronto, depressão.
Parece que realizar sonhos não é sobre abrir um presente, mas trabalhar por eles.
Parece que o esforço da colheita é diferente do da plantação, mas ainda é um esforço.
Sou muito grata. Estou muito feliz. Na verdade, me sinto culpada quando não me sinto feliz. Segui o script, mas coloquei umas notas em volta. Casei. Mudei de estado. A gente chegou sem nada, só com as roupas na mala. E agora compramos nossa casa. Temos um filho lindo. Trabalho pra gringa, uma carreira bacana, fui elogiada pra firma toda com 6 meses de casa. Pago minhas contas. Ganhei apoio dos meus pais, monetário e simbólico. Refiz minha relação com a minha irmã e com meus pais.
Quando eu fiz 30 anos eu não fiquei “ai meu deus 30 anos” que nem todo mundo. Sei lá, eu achei normal. Tanto que mudei de profissão aos 31. Mas agora que tá chegando os 40 tá batendo diferente. Adulta né. Mas meu bingo (meu?) tá completo. Com casa, casamento, criança, carreira e 200 horas de Stardew Valley com todas as receitas entregues, faltam 3 peixes e outras miudezas. No jogo, a perfeição vem.
Na vida, tomara que não venha. A ânsia de querer e o tédio de possuir do perfeccionista é impossível, frustrante e cansativo. Que eu seja menos perfeccionista aos 37. Que eu faça mais ginástica. Que eu coma tranquila. Que eu não queira morrer. Mas que eu fique triste às vezes, que eu fique ansiosa um pouquinho, que eu fique feliz, aliviada, e leve.
E que venha mais um ano pra gente escrever mais um script.