A gente tira o casaco quando está calor.
O ano era 2009, eu trabalhava em uma agência de websites como front-end. O ritmo era insano. Eu ainda desengonçada por ter saído da faculdade, tentando construir meu senso de "eu" -- que só está realmente sendo construído agora quase no ano 3 da psicoterapia, mas divago. Logo “eu”, não sou como as outras garotas, uso jeans, all star e camiseta preta, não uso esmalte e falo muito palavrão.
Uma colega ouviu isso e disse “Engraçado, você tem essa pose de durona mas todo mundo te chama de Martinha”. Isso me pegou demais.
O ano era 2018, eu era front-end em uma empresa em Florianópolis. Um amigo tirou uma foto minha e disse: “essa é a cara que você faz quando a gente te pede ajuda”. A foto:
Ok, eu tava comendo, mas não vem ao caso.
Esse deve ter sido o melhor feedback que já recebi em toda minha vida.
Daquele dia em diante, decidi mudar isso. Porque eu gosto de ajudar, porque eu me importo, e se a comunicação é uma tríade de transmissor, meio e ouvinte, eu preciso fazer minha parte.
Fiquei muito mais simpática e acessível. Compartilhei informações com vontade. Lembrei de um conselho que recebi em 2005. Eu era monitora de uma escola de informática. Eu tinha muita dificuldade de explicar as coisas aos 17 anos. Lembro até hoje de um idoso que eu não consegui explicar como trocar o papel de parede do windows. Outro professor me deu a dica de ouro: use analogias. A pessoa pode não saber sobre o quê você está falando, mas ela tem algo no universo dela que é semelhante (oi, Paulo Freire).
Isso me fez ser a ponte entre humanas e exatas que eu sempre fui na casa que cresci, e usar trauma como feature. Deu super certo. Foi isso que me guiou até onde estou hoje.
Para servir nessa persona, eu achava “Marta” um nome forte demais. Um nome de idoso. Nos EUA, a maioria das Martas foram registradas nos anos 50, ou seja, estão com 74 anos pra mais hoje. Um nome de senhora, respeitável, que cria um degrau imaginário de respeito que eu não queria ter.
Dados dos EUA porque não achei brasileiros, que deve ser bem menos popular.
Me diminuí pra caber no papel: Dona Marta é uma pessoa diferente da Martinha. A Martinha é leve, brincalhona. Ela está pronta pra te ouvir e te ajudar a achar uma solução criativa para seu problema. Ela vai te explicar as coisas de um jeito que você entende, e acomodar suas necessidades de acessibilidade, como legendas, cores caso você seja daltônico, aumentar ou diminuir o volume. Martinha é criativa, inteligente e não tem tempo ruim: “Putz deu tudo errado!” “Ok, como a gente vai fazer de novo?”.
Trabalhei muito para ser assim e tenho orgulho de ser assim. É algo que ressoa comigo. É algo que genuinamente me ilumina, me deixa contente, me alimenta e carrega minha bateria social. Me enche de dopamina. Eu amo fazer uma palestra, eu amo o alívio de uma pessoa quando ela entende um conceito que eu expliquei, eu absolutamente vivo pela sensação de fazer um bom trabalho que ninguém tinha pensado antes.
Mas deixei de ser a Martinha. Na minha empresa nova, me apresentei como Marta e sou a Marta.
Primeiro porque americanos e falantes de inglês vão ter dificuldade com o nha. Não é um som que estão acostumados a fazer. Inclua isso na parte da acessibilidade: é uma acessibilidade linguística remover a parte complicada de um nome que funciona tão bem na gringa, que já chegaram a me confundir como não-brasileira.
Mas tem uma coisa a mais: eu não sou pequena. Não sou inocente. Não sou uma menina. Sou uma mulher. Uma profissional com quase 20 anos de experiências variadas. Uma referência, uma pessoa com conhecimento, uma pessoa cuja opinião deve ser ouvida e considerada.
Isso não quer dizer que sou inacessível, arrogante ou fechada. Não quer dizer que deixei de estar pronta para ajudar com um sorriso, simpatia e esse calorzinho de um abraço virtual respeitoso.
Mais do que nunca, sigo fiel aos meus valores: eu os construí, eles fazem sentido pra mim e gosto deles. Apenas assumi também, que, às vezes, vou estar comendo e irritada; às vezes, se eu já expliquei algo trezentas vezes, explicar a 301 pode ser cansativo. Às vezes, eu não vou ser a melhor pessoa para fazer algo, vou estar sobrecarregada ou não faz parte do meu escopo, e vou dizer não. Às vezes eu vou travar, eu não vou saber fazer algo, e vou pedir ajuda. Eu não sei tudo, e ainda bem, deus me livre.
Saber e aceitar isso e ocupar meu lugar como Marta é uma progressão dessa persona, mantendo as coisas que ela me traz, mas refinando para um modelo mais maduro e ainda mais sereno.
Olha a Marta Preuss, que graça:
Você não gostaria de ver uma palestra dela? Tirar umas dúvidas com ela, bater um papo? Eu gostaria. E esse é o máximo de auto-estima que eu jamais tive na vida.